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TRÁFICO HUMANO – Filhos vítimas da miséria humana

Prof. Josimário Silva*

A campanha da Fraternidade promovida pela CNBB deste ano denuncia um grave problema para a humanidade: O tráfico de Seres Humanos. Em pleno século XXI estamos presenciando o mercado humano para as mais diversas formas de violência que vai do trabalho escravo ao tráfico de órgãos, práticas essas repugnantes para uma sociedade dita civilizada. Enquanto sociedade não podemos cruzar os braços e fecharmos os olhos diante de práticas criminosas como essa. O Ser Humano em sua essência é dotado de dignidade. Dignidade humana, expressão utilizada pela primeira vez por São Tomás de Aquino na Idade Média. O respeito ao Ser Humano que para Immanuel Kant é um dos valores básicos da sociedade moderna e fundamenta-se no princípio de que cada pessoa é fim em si mesmo e não meio para as mais diversas maneiras de degradação humana. Eis a nossa responsabilidade ética como cidadãos e cidadãs na proteção de pessoas em extrema vulnerabilidade. Sob a ótica da responsabilidade ética, o princípio da Alteridade nos remete a apreender o outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo das suas diferenças. A prática da Alteridade como princípio ético, nos mobiliza para a cidadania estabelecendo uma relação construtiva com a diferença, portanto, não há lugar para a neutralidade.

Nesse grave problema alertado pela campanha, temos como pano de fundo a pobreza, a vulnerabilidade social e educacional que não permite que a pessoa desenvolva competências intelectuais para identificar os riscos e o perigo escondido por trás do poder econômico. Cobramos a presença do Estado de Direito para resgatar todo o ser humano em condição de vulnerabilidade social e educacional, devido à falta de moradia, condições insalubres de espaços sociais, violência em seus diversos âmbitos tão comum nas condições de pobreza social. Compete a Escola transformar o cidadão e a cidadã, condição já alertada por Paulo Freire, porque é o cidadão que transforma o mundo e promove melhoria no seu meio. O processo de educação deve ser permanente e alerte os riscos da globalização tão assimétrica em relação às populações desassistidas e em extrema pobreza.

À sociedade compete a denuncia, a mobilização e o engajamento contra toda e qualquer prática de comércio humano. Precisamos nos unir e parabenizar a CNBB pela iniciativa. Devemos refletir sobre esse quadro e promovermos ações concretas no que tange ao tráfico humano. Não podemos permitir que esse mal se enraíze cada vez mais em nossa sociedade e criarmos uma geração de filhos vítimas da miséria humana. Como afirma Hölderlin, em Virtudes do Perigo “lá onde cresce o perigo, cresce também aquilo que salva, lá onde cresce a desesperança, floresce a esperança. A chance suprema reside no risco supremo.” Estamos no risco supremo. Então temos a chance suprema para lutar contra o tráfico humano.

*Coordenador do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Bioética/UFPE

Membro da Escola Superior de Ética Médica

A bioética na formação médica

Prof. Josimário Silva*

Educar é com certeza uma das mais difíceis tarefas na construção social de uma nação. Há uma tendência natural do educador em ensinar de acordo com a sua percepção e seus valores e nesse processo a transmissão do conhecimento não dá espaço para que haja um diálogo mais aberto e reflexivo entre educando e educador. Mas educar é acima de tudo não dogmatizar. E ai está o grande desafio do educador: Como educar sem dogmatizar. Enquanto educadores devem perceber que houve mudanças no processo ensino / aprendizado e o que era unilateral centrado na figura do educador, passa a ser dinâmico, cabendo ao aluno buscar a solução dos problemas e, ao professor, orientar e ajuda-lo a superar as dificuldades e limitações. O educador deve manter compromissos pessoais, morais e sociais que lhe geram responsabilidades técnicas e éticas e na área médica acrescenta-se ainda o caráter altruísta, de solidariedade, de ajuda e de proteção que deve estar presente em toda relação pedagógica e em toda conduta médica. Mas é importante que se estabeleça essa relação sem paternalismo e com isso não se restringe a capacidade de autonomia de pensamento, o que fragilizaria o processo formativo diante das inúmeras situações e angustias que surgiram no cotidiano clínico. O conhecimento é um processo de construção contínuo e permanente, onde os interlocutores devem estar sempre sensíveis às mudanças que a ciência proporciona durante o seu desenvolvimento. Não podemos esquecer que a fundamentação que dá esteio a Medicina está nas ciências biológicas, humanas e sociais. Outro grande desafio do educador na área médica é sintonizar o ensino às exigências contemporâneas (alta tecnologia, grande volume de informação, manutenção do padrão social elevado, discrepância social no acesso aos serviços de saúde e direitos civis), enfatizando o papel social do ensino. A formação médica desde o início vem primando pela técnica, pelo o uso da tecnologia na resolução de todos os problemas e falhas que o organismo possa se deparar. Ensinamos aos nossos alunos e residentes que a cura do paciente será atingida se eles forem tecnicamente competentes e utilizarem todos os recursos tecnológicos disponíveis, mas esquecemos de dizê-los que as máquinas também falham e quando isso acontece, não ensinamos a estabelecer um diálogo franco e aberto com o paciente, que na realidade é a premissa básica na relação médico/paciente.

A introdução do tema bioética na graduação dos cursos médicos abre uma nova perspectiva na formação do futuro médico. Como se posicionar diante de problemas éticos e dilemas morais comuns ao cotidiano médico? Como aceitar a pluralidade de opinião e valores nas intervenções em saúde? Observamos o impacto que os temas como aborto, eutanásia, direito de decidir, diretivas antecipadas, etc…causam nos alunos que estão ávidos pelas disciplinas práticas e os estágios. Aquele falso universo de onipotência que já se instalou culturalmente na cabeça de muitos estudantes começa a ruir e eles percebem o quanto está fragilizado diante da possibilidade de ter que decidir por outra pessoa, doente, vulnerável e que muitas vezes não conseguem dimensionar os riscos agregados a sua patologia. Não é simples tomar decisões no contexto médico, principalmente quando está em jogo valores morais distintos. A medicina contemporânea vem por um lado promovendo e intensificando o modelo tecnicista, que tem trazido tantos avanços na cura de doenças, no diagnóstico precoce e nas intervenções terapêuticas cada vez mais cedo e por outro lado, provocando a necessidade de se repensar o modelo de relação médico-paciente. É de se questionar se esse avanço tecnológico não está de certa forma influenciando na não aceitação de aspectos como  a espiritualidade e culturalidade que são inerentes a todos os seres humanos. Em uma sociedade de direitos e deveres, cabe ao profissional entender a capacidade de deliberar do paciente e a responsabilidade que tem o profissional de orientar e ajudar para que a deliberação possa atender o real interesse do indivíduo que na sua vulnerabilidade, encontra-se fragilizado para uma tomada de decisão mais coerente com o seu quadro clínico. Mas como ensinar ética em medicina se ainda existem pensamentos doutrinadores que não permite o estabelecer do diálogo nas atividades acadêmicas? Como ensinar ao estudante a ter postura ética se não darmos a ele à liberdade de fazer reflexões críticas e com isso torna-lo aliado de um modelo pedagógico participativo onde todos os atores são responsáveis pela formação. A ética hipocrática ainda tão presente na formação profissional, deve ser contextualizada em uma nova perspectiva, tendo em vista que novos dilemas e conflitos se estabeleceram nas relações em medicina. Historicamente o modelo de relação médico / paciente hipocrático, vem prevalecendo ao longo do tempo. Esse modelo também denominado consequencialista ou sacerdotal coloca o profissional de saúde em uma posição paternalista em relação ao paciente, onde em nome do princípio da beneficência são tomadas todas as decisões desconsiderando desejos, crenças e opiniões do paciente. Esse é um processo de baixo envolvimento, que tem como base uma relação de poder entre o médico e o paciente. Mas como ensinar ao nosso estudante que o princípio moral que rege a relação entre médico e paciente é o das virtudes? Buscar o justo equilíbrio entre a necessidade da intervenção e o direito de autonomia do paciente é o maior desafio na medicina contemporânea. Esse processo deve ser iniciado desde a entrada do aluno na faculdade. Respeitar e compreender a ambigüidade moral das decisões que enfrentam e não deixar de buscar o que é certo e bom em cada decisão é um grande desafio. O ensino de ética e bioética no curso médico tem sido motivo de intensos debates nos últimos anos. Esse fato é motivado por mudanças que vêem ocorrendo nos campos sociais, culturais, econômicos, tecnológicos e políticos. Faz-se imperioso melhor qualificar a formação ética do profissional médico por ser essencial em seu labor cotidiano, bem como no relacionamento com pacientes e seus familiares e a comunidade em geral. O século XXI pede por profissionais habilitados para tomarem decisões prudentes frente aos dilemas morais relacionados à saúde humana. A publicação do Relatório Flexner contendo a realidade da medicina do início deste século e as propostas de mudança para que se chegasse à medicina científica da atualidade, acarretou um distanciamento entre a Medicina e a Ética. A medicina científico-tecnológica “prescindia” de reflexões éticas, o que trouxe consequência ao ensino e à prática médica. Dois levantamentos realizados em 1985 e 1992 mostram a situação do ensino da ética nos cursos de graduação em medicina no Brasil e nos permitem concluir pela implantação do conteúdo de Bioética durante todo o processo formativo do futuro médico. 

 

*Coordenador do Núcleo e Estudo e Pesquisa em Bioética da UFPE

Membro da Escola Superior de Ética Médica