O problema
Desde sua promulgação, em 2007, a Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos Povos Indígenas (da qual o Brasil é cossignatário) prevê prestar “
particular atenção aos direitos e necessidades especiais (…) das crianças e das pessoas com deficiência“, adotando “medidas, junto com os povos indígenas, para assegurar que as mulheres e as crianças indígenas gozem de proteção e garantias plenas contra todas as formas de violência e discriminação” (art. 22) e considerando que os direitos reconhecidos na Declaração “constituem normas mínimas para a sobrevivência, a dignidade e o bem-estar dos povos indígenas no mundo” (art. 43) (1).
2Ver “Tradição indígena faz pais tirarem a vida de crianças com deficiência física” http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/12/tradicao-indigena-faz-pais-tirarem-vida-de-crianca-com-deficiencia-fisica.html
3Engelhardt, H. T. Jr. 2012. Bioética global: uma introdução ao colapso do consenso. In: ID (org.). Bioética global: o colapso do consenso. São Paulo: Paulinas/União Social Camiliana/ Centro Universitário São Camilo, pp. 19-40, p. 20-22.
No debate instaurado pela promulgação da Declaração se destaca a mídia que, em 2004 no programa Fantástico apontava uma suposta violação dos direitos humanos por parte de populações indígenas e, consequentemente, uma criminalização da prática do “infanticídio indígena”
(2). Entretanto, muitas vezes a complexidade de tal prática é descontextualizada, pois são esquecidos os dados epidemiológicos sobre a mortalidade infantil de menores de cinco anos que mostram que, nas populações indígenas, a mortalidade é quatro vezes maior que a média nacional, devido à desnutrição, a diarreias, viroses e infecções respiratórias, à falta de saneamento básico, à expropriação territorial e à desassistência à saúde.
De fato, o infanticídio é uma prática polêmica, sobre a qual não existe praticamente consenso nas assim ditas sociedades seculares e pluralistas contemporâneas, caracterizadas por Engelhardt como sociedades que seriam, em realidade, sociedades de “estranhos morais”, nas quais não haveria praticamente consenso sobre assuntos morais, visto que não seria possível “
vislumbrar no horizonte nenhuma solução para nossas controvérsias”, pois “as guerras culturais que fragmentam as reflexões bioéticas em campos sectários culturais de contenda estão fundadas em uma diversidade moral insolúvel“, devido não somente à falta de “um consenso moral em defesa de uma moralidade comum“, mas também a “um desejo de negar o desafio da diversidade moral à governança e à estabilidade política” (3).
Este parece ser também o caso da controvérsia sobre o infanticídio. De fato, o debate atual sobre o infanticídio em populações indígenas, praticado por famílias e tribos em suas crianças portadoras de deficiências graves e, portanto, destinadas em princípio a morrer, nos remete à controvérsia moral instalada, na ética aplicada contemporânea, pela logomaquia entre, por um lado, os defensores do princípio da sacralidade da vida – que proíbe tirar a vida de qualquer ser humano – e, por outro lado, os defensores do princípio da qualidade de vida – que admite tirar uma vida considerada sem “qualidades” e, em princípio, de acordo com os responsáveis pela proteção desta vida. O problema é em realidade muito complexo, pois se trata de conciliar a validez de um princípio moral com pretensões de validez universal (como o mandamento “não matarás”) e sua contextualização, que reduz sua validez “absoluta” a uma validez prima facie, isto é, que em determinadas circunstâncias não vale mais “absolutamente”.
Contextualização do problema
O debate sobre o infanticídio de crianças portadoras de deficiências que comprometem seriamente a qualidade de vida da criança tem antecedentes históricos antigos, pois – como lembra Peter Singer – o infanticídio “
tem sido praticado em sociedades que variam, desde o Taiti até a Groenlândia, e em culturas que vão dos aborígenes nômades da Austrália às sofisticadas comunidades urbanas da Grécia antiga ou da China dos mandarins [que] matavam os bebês deformados ou debilitados“, pois tais culturas consideravam que ser membro da espécie homo sapiens não era condição suficiente para “assegurara a proteção da vida das pessoas [e, portanto] as crianças pequenas não tinham automaticamente o direito à vida“, sendo que “a proteção absoluta sob a qual se encontra atualmente a vida de um bebê é uma atitude distintamente cristã, e não um valor ético universal“. (4)
4Singer, P. 2002. Vida ética: os melhores ensaios do mais polêmico filósofo da atualidade. Rio de Janeiro: Ediouro, pp. 166-206.
5Ver http://www.jusbrasil.com.br/topicos/27225935/trafico-de-criancas-indigenas/noticias
Entretanto, o atual tráfico internacional de crianças indígenas (5), muitas vezes retiradas das aldeias sem o consentimento livre e esclarecido dos pais (ou da tribo) para serem adotadas, alegando que, assim, evitar-se-ia de serem mortas existências inocentes, parece complicar enormemente o assunto, pois, temos, por um lado, os supostos defensores dos direitos humanos universais, dentre os quais se destaca o direito à vida de qualquer representante da espécie homo sapiens, pelo menos desde seu nascimento, e que implicaria “proteção e garantias plenas contra todas as formas de violência e discriminação“, e, por outro, quem contextualiza tal direito universal, tornando-o, um direito prima facie, que, enquanto tal, deve ser contextualizado nas condições concretas em que o novo ser humano se encontra, e que pode ser considerado sem nenhuma qualidade de vida significativa para que tal vida continue (como seria o caso de determinadas crianças portadoras de deficiências e incapacidades consideradas severas).
De fato, os defensores da “sacralidade” de qualquer vida humana que proíbem absolutamente o infanticídio aduzem, muitas vezes, que tal proibição se justificaria porque os pais dessas “vítimas inocentes” não as cuidariam, nem as amariam, suficientemente. Mas esta crença foi contestada por especialistas em populações indígenas, que mostraram a existência de “diferentes modos de lidar com as crianças com deficiências“, pois “uns lidam com naturalidade, outros com superproteção e baixa expectativa“, podendo-se destacar que “na maioria dos casos” o relacionamento tem se dado “de forma positiva“, e isso apesar de ter que “criar uma criança com deficiência na aldeia [com] recursos parcos e atendimento deficiente, [ o que] se torna uma tarefa difícil para os pais“. Em realidade “[a]s crianças indígenas com deficiência necessitam de medidas de proteção especiais, por se encontrarem em situação de vulnerabilidade social, ou com perspectivas de prejuízos maiores dos que já enfrentam em suas comunidades“, sendo que, em alguns caos, “crianças indígenas com deficiência são vítimas de dupla discriminação: alijadas do convívio familiar e não ter as suas necessidades específicas decorrentes da condição de deficiência atendidas“. Em suma: “[a] maior preocupação manifesta diz respeito à sobrevivência da criança em meio inóspito e em condições precárias de vida e saúde“, embora “as reais possibilidades e potencialidades da criança com deficiência, ainda [sejam] desconhecidas” (6).
6 Bruno, MMG & Souza, VPS. 2014. Crianças indígenas Kaiowá e Guarani: um estudo sobre as representações sociais da deficiência, Revista de Educação Pública, Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, v. 23, n. 53/1, pp. 425-440, p. 435-438.
7 Maliandi, R. & Thüer, O. 2008. Teoría y Praxis de los principios bioéticos. Buenos Aires: Universidad Nacional de Lanús, pp. 116-117.
8 Singer, 2002, Op. Cit., p. 282.
9 Schramm, FR. 2010. The morality of infanticide at the crossroads between moral pluralismo and human rights culture, Cad. Saúde Pública, 26 (5): 871-873. [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2010000500006]
Como resolver esta controvérsia?
Uma das possíveis soluções deste caso de conflituosidade moral é a proposta de uma “ética convergente“, capaz de “entender a estrutura conflituosa do ethos” e de articulá-la através de “mediações” para se chegar a uma “minimização dos conflitos de interesses e de opiniões” (7).
Uma “ética convergente” seria, por exemplo, aquela capaz de abordar o problema da preservação da vida da criança deficiente em determinadas circunstâncias, como no caso em que ” a criança pode ser cuidada por outra pessoa, que deseja mantê-la, caso a mãe não o deseje“, o que constitui – segundo Singer – “uma importante razão para se preservar a vida da criança, em sociedades onde houver mais casais candidatos a adotar bebês do que bebês disponíveis para adoção“, mas considerando também a possibilidade de que “se houver oferta de bebês para adoção sem que ninguém deseje adotá-los, não haverá razão alguma para a preservação de suas vidas” (8).
Por isso, a moralidade do infanticídio em populações indígenas deve necessariamente ser contextualizada cultural e socialmente, sabendo que, no caso aqui em exame, o recém-nascido só passa a existir socialmente se a mãe o aceitar, ou, caso não o aceite, se sua aceitação for de um substituto da mãe que o queira e aceite. Assim, além de uma vida biológica a criança terá também uma identidade social e cultural, sem a qual não haveria a necessária inscrição simbólica (e imaginária) para que o novo ser humano exista, como um todo, para alguém, para uma comunidade e para o mundo, isto é, para que tenha além de uma vida, uma biografia e seja considerado uma “pessoa”.
Em outros termos, a prática do infanticídio em populações indígenas deve ser inscrita em sua própria cosmovisão (como o infanticídio doa gregos e dos romanos lembrado por Singer), que possui, inclusive, normas morais que podem ser distintas e diferenciadas daquelas existentes ao seu redor, e que deveriam ser – de acordo com a própria Declaração de 2007 – respeitadas.
A prática do infanticídio é, evidentemente, polêmica moralmente, inclusive porque – como tentei mostrar alguns anos atrás (9) - se choca com aquela porção de moral do senso comum que todos possuímos, pois fomos educados a ter em conta os valores da tradição (como não matar injustamente ou proteger seres vulnerados) e que estão na origem da abolição do infanticídio. Mas faz parte desta moralidade do senso comum também a percepção de que vivemos em sociedades plurais e seculares (como pretende ser em princípio a sociedade brasileira que distingue a cidadania da religiosidade), que, enquanto tais, estão sujeitas à necessidade da tolerância das diferenças e até da empatia, entendida como “estado de „sintonia‟ emocional e cognitiva com outra pessoa”
(10), que considero necessária para poder sair (pelo menos momentaneamente) da conflituosidade, que cria um sofrimento que é evitável. E isso tendo em conta que, nas sociedades contemporâneas, não existe (como bem apontado por Engelhardt) uma moral canônica aceita por todos os integrantes da sociedade, como mostram os “acusadores” e os “defensores” do infanticídio. Isso implica que, se quisermos evitar o conflito aberto (com todo o sofrimento implicado) e optar por alguma forma de “convergência”, podemos tentar realizar este desejo legítimo de solucionar o conflito.
10 Blackburn, S. 1997. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 114.
Para não concluir…
De fato, não podemos esquecer que o infanticídio é uma realidade polêmica, sendo que a principal crítica, que pode ser movida à postura de respeitar (e até de ter “empatia” com) as diferenças e as crenças das varias comunidades morais que compõem um país (como o Brasil), consiste em considerar que o pluralismo moral envolvido nesta postura redundaria em um “relativismo moral” inaceitável, pois este tornaria improvável qualquer possibilidade de valores compartidos, como aqueles representados pelos direitos humanos, e que, enquanto tais, deveriam ser em princípio aplicáveis universalmente, e nos quais se inscreve, explicitamente, o direito à vida e, implicitamente, a proibição do infanticídio.
Entretanto, esta possível crítica esquece que o pluralismo moral não é necessariamente sinônimo de relativismo moral, pois o primeiro implica o respeito das diferenças (e até a empatia), o que não é necessariamente o caso do relativismo moral, que pode ser considerado como não implicando respeito nenhum.
De fato, o pluralismo moral implica em tentar construir “convergências” para resolver um conflito moral (como aquele representado pelo infanticídio), desde que o agente moral externo à comunidade tenha suficiente compreensão e respeito do sistema de valores do paciente moral (que admite o infanticídio em determinados casos), o que pode ser visto como condição necessária para que a “convergência” aconteça. Ou seja, trata-se de tentativas concretas de encontrar, no plano simbólico, acordos entre atores e sistemas de valores em conflito, mas pressupondo:
(1) que as partes em conflito admitam o
a priori de querer chegar a um acordo (conhecido também como condição transcendental de qualquer confrontação dialógica);
(2) o princípio do consentimento esclarecido de todas as partes em conflito cognitiva e moralmente competentes; e talvez,
(3) o princípio de caridade consistente em pressupor que todos “estejam jogando limpo”.
Cordialmente,
Fermin Roland Schramm
Diretoria Sociedade Brasileira de Bioética