Considerando que o estabelecimento do Sistema CEP/CONEP envolveu discussão ampla e pública com toda a sociedade brasileira, incluindo as instituições governamentais, as universidades, os centros de pesquisa e a sociedade civil, aprovando normas para a proteção do sujeito da pesquisa e para a correta avaliação de todos os aspectos éticos relacionados aos projetos de pesquisa envolvendo o ser humano em todas as áreas do conhecimento;
Considerando que este sistema foi capaz de estabelecer diretrizes éticas claras e firmes e tem servido de exemplo para instituições internacionais;
Considerando que a proteção ao sujeito da pesquisa no Brasil foi capaz de impedir a utilização de placebo em situações onde existem comparadores eficazes;
Considerando que as diretrizes brasileiras relacionadas ao acesso pós-estudo, possibilitam ao sujeito de pesquisa o acesso necessário aos produtos de pesquisa que se mostrarem eficazes, protegendo-o e definindo de maneira correta, que o ônus desta manutenção é obrigação dos patrocinadores:
Considerando que este sistema deve ser público, independente e com a participação efetiva de pessoas das mais diversas áreas do conhecimento e de representantes dos usuários;
Considerando o papel imprescindível exercido por este Sistema nas quase duas décadas desde sua implantação em 1996. Alem disto, afirmando que é possível separar a pesquisa envolvendo seres humanos e não apenas a pesquisa clínica do Brasil em duas épocas, uma antes da implantação do Sistema CEP/CONEP (quando não existiam normas de proteção) e uma após esta implantação, com definições claras e éticas para a realização de pesquisa no pais.
Considerando que a justificação apresentada no PLS 200/2015, de autoria dos Senadores Ana Amélia, Waldemir Moka e Walter Pinheiro, relacionada aos “princípios, às diretrizes e às regras básicas norteadoras das pesquisas clínicas no país”, onde explicita que “[...] a regulação dessa importante matéria por norma infralegal é frágil [...].” (4º e 5º parágrafos); e que:
a) “O Sistema CEP/CONEP é lento e burocrático”, o que segundo eles inibiria inovação em Saúde. (9º parágrafo)”;
b) “A dupla, ou tripla, análise dos protocolos de pesquisa, que torna lenta a tramitação dos protocolos de pesquisa;” (11º parágrafo);
c) “A injustificada falta de isonomia no processo de análise para projetos de pesquisa nacionais e os multicêntricos internacionais;” (11º parágrafo);
d) Propõem a criação de dois tipos de comitê de ética em pesquisa: um “comitê de ética institucional (CEP)” e outro “Comitê de Ética Independente (CEI)”. Este CEI seria “uma organização independente”, ou seja, poderia ser criado fora das instituições e com financiamento privado. Esta proposta sobre os comitês de ética pressupõe a extinção do sistema CEP/CONEP e, se este for destruído cairemos num processo provavelmente privado, com estabelecimento de diversos CEPs privados, inclusive financiados pela indústria. Estes comitês estarão sujeitos a diversas situações de conflito de interesse (situação que já ocorre nos EUA, onde há publicações criticando este sistema, inclusive pelas pressões externas para a aprovação de projetos):
Considerando que, se este PLS for aprovado como proposto:
a) A utilização de placebo como controle dos ensaios será flexibilizada – o artigo 27 autoriza seu uso se for para “atender exigência metodológica justificada”, mesmo que exista tratamento eficaz como comparador:
b) O direito ao acesso ao tratamento após o término do estudo (artigo 28) restringe-o apenas a “situações em que há risco de morte ou agravamento clinicamente da doença e quando inexistir alternativa terapêutica no país para a condição clínica do participante da pesquisa.”:
c) Este projeto regulamenta exclusivamente a realização de ensaios clínicos, ou seja, não estão incluídas outras pesquisas clínicas e nenhuma outra pesquisa envolvendo os seres humanos;
e) Cumpre enfatizar que esta PLS é praticamente a cópia do “Manual de Boas Práticas Clínicas, documento exarado do Comissão Internacional de Harmonização, patrocinado pelas agências reguladoras dos EUA, Europa e Japão. Este manual é operacional e não ético e seu objetivo principal é harmonizar a realização dos Ensaios Clínicos, e não a Pesquisa Clínica, para facilitar o registro pelas agências reguladoras dos países signatários.
Com estes considerandos e com a certeza que o sistema CEP/CONEP está consolidado e suas normas são respeitadas mesmo sem a força de lei, a primeira pergunta a ser feita é sobre a necessidade de uma lei específica para garantir a sua “legalidade”. Como este PLS já está em tramitação há que se manter a pressão para interrompê-la, ou na pior das hipóteses, buscar alternativas para impedir os danos que adviriam da sua aprovação como está.
Assim, a Sociedade Brasileira de Bioética, reunida em Assembléia Geral durante o XI Congresso Brasileiro em Curitiba, Paraná, se posiciona em relação a pontos inegociáveis dos requisitos éticos em pesquisas envolvendo seres humanos:
- A manutenção do Sistema CEP/CONEP, público, com controle social – Os argumentos estão listados nos considerando acima. Vale enfatizar que a UNESCO tem utilizado o exemplo brasileiro para que outros países estabeleçam sistemas nacionais.
- Acesso pós-estudo: É fato sabido a verdadeira batalha, inicialmente ganha quando da aprovação da versão 2000 da Declaração de Helsinque, onde o acesso era garantido e depois solapada por pressão da indústria farmacêutica e das agências reguladoras norte americanas submetidas à lei local que as impedem de fornecer medicamentos para os sujeitos de pesquisa. O Brasil hoje serve de exemplo para o mundo, pois aqui os ensaios clínicos internacionais adotam a norma brasileira, mostrando que isto além de ético, é factível.
Assim, o acesso a tratamento que se mostrar eficaz e sem custo, deve ser mantido pelo tempo que for necessário após o término do estudo. Este é um direito daquele que se expõe aos riscos e envolve os princípios da reciprocidade e da justiça. Além disto, acentua-se que esta manutenção não arranha os custos da pesquisa e nem os lucros, que serão obtidos com os produtos desenvolvidos.
3. Restrições ao uso do placebo: A intensa pressão da indústria contra a norma brasileira que restringe o uso do placebo como comparador aos estudos onde não há tratamento eficaz tem a ver com seu desinteresse em comparar novos medicamentos com outros já estabelecidos e que poderão ser de outra indústria – como hoje é obrigatória a publicação dos resultados, evidentemente correm o risco de publicar algum artigo mostrando que o medicamento do concorrente é melhor que o seu.
A SBB se posiciona pela manutenção da decisão brasileira tomada inicialmente pelo Conselho Nacional de Saúde em agosto de 2008 (Res. 404) e acompanhada inequivocamente pelo CFM em 2008 (Res. 1885) e incluído em artigo do Código de Ética Médico em 2009. Não há justificativa ética para a suspensão ou a não disponibilização de produtos eficazes existentes para que sejam comparados com o produto em teste. Deslizes éticos desta prática estão claramente afirmados em publicações internacionais. [i]
Outro ponto positivo da norma brasileira é que, para a saúde pública, o grande interesse é a comparação cabeça a cabeça entre medicamentos, para que a decisão de incorporação ou de desincorporação pelo SUS se dê de maneira correta.
Em síntese, problemas operacionais explicitados na PLS e que são a principal, senão única, justificativa para esta proposta de lei, podem e devem ser enfrentados e resolvidos. As soluções possíveis incluem o financiamento específico e adequado para sua atuação, a implementação de qualificação dos membros (e sua valorização), a simplificação de procedimentos (e.g., a melhoria da Plataforma Brasil, a intensificação da contato com os pesquisadores, e a possibilidade de regionalização do sistema).
Além disto, parece inadequado e extemporâneo engessar o processo de avaliação ética e suas diretrizes em uma lei, a qual quando for necessário modificar, será tarefa extremamente difícil.
Assim, o risco de aprovação desta PLS não é apenas o dano que acarretará à pesquisa no Brasil e aos participantes, mas especialmente à saúde pública brasileira que utiliza os resultados para sua tomada de decisão de incorporação de novos medicamentos e tecnologias no SUS.
1. [i] . Um exemplo seminal foi a intensa discussão sobre os ensaios clínicos relacionados à transmissão vertical do HIV no final dos anos 90, quando os serviços de saúde norte americanos patrocinaram ensaios com uso de placebo em países do 3o mundo (Angell M. The Ethics of Clinical Research in the Third World N Engl J Med 337:847, September 18, 1997 Editorial; Lurie, P, Wolfe, S. Unethical trials of interventions to reduce perinatal transmission of the Human Immunodeficiency Virus in Developing Countries. NEJM 1997; 337 (12): 853-856)